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27 de December de 2017

Caligrafias de um garrancho

A palavra era Chesbrough, rabiscada rapidamente em uma anotação para a minha dissertação. No primeiro olhar após o rabisco, havia entendido, no segundo não conseguia mais decifrar. O garrancho era tão [ … ]

A palavra era Chesbrough, rabiscada rapidamente em uma anotação para a minha dissertação. No primeiro olhar após o rabisco, havia entendido, no segundo não conseguia mais decifrar. O garrancho era tão explícito que minha caligrafia mais parecia uma arte dadaísta que uma sequência de caracteres. Olhei e pensei:  existe alguém com a letra mais feia que eu?

Uma realidade que convivo desde a infância, quando os cadernos de caligrafia eram métodos de tortura para uma criança com problemas de coordenação motora. Palavras não são más, palavras não são quentes, mas podem ser terrivelmente representadas em folhas de papel.

As brincadeiras sobre escrever a mão e o passado distante, as ironias feitas à universidade onde estudo por ainda trabalhar com textos manuscritos, o orgulho de usar o Evernote e já ter feito matérias pelo celular, são todas miseráveis desculpas para esconder esse meu talento escrever prescrições médicas.

É um defeito que não me impede de ver a beleza de um texto escrito a mão. Principalmente se vier das mãos de um artista da caligrafia, mas todos os manuscritos, bonitos ou garranchos, possuem o seu valor. Uma arte milenar, um costume que jamais será perdido.

Escrever um texto a mão é uma forma raiz de expressar. Seja um bilhete, uma anotação na aula ou uma carta, uma prática social tão maravilhosa que até pessoas com garranchos como eu podem (ou puderam) participar.

O Xico Sá disse que uma carta de amor vale por mil nudes. Verdade que lamber um selo postal, ir até os correios e receber uma delas na sua casa tem um valor especial, quase um ritual. Mas o verdadeiro prazer da carta está em escrever ela.

Já escrevi cartas de amor, já recebi também. Tive a ousadia de escrever cartas de amor com a minha letra. É como alguém fazer uma serenata cantando extremamente mal. Entre boas histórias e desfeitas, fica a lembrança do tempo que conseguia entender o que escrevia.

Consciente da minha coordenação motora, continuo a escrever. Por trás dos teclados, mantém se a essência de uma boa história, de boas palavras. O Xico Sá se preocupa com a urgência pornográfica dos nudes, eu me preocupo com a sintetização das antigas cartas em redes sociais. Há até quem combata o textão do Facebook, que deveria ser incentivado. As pessoas devem escrever mais, usar mais as palavras, brincar com elas.

Vamos escrever mais. Vamos escrever cartas de amor, cartas de ódio, textões políticos, observações do cotidiano chulo, histórias mirabolantes. Vamos falar daquela mulher que você nunca mais encontrou após a noite no bar, dos pássaros que sobrevoavam o jardim ou da ansiedade daquilo que está por vir.

Não precisa ser artista para escrever. Esta crônica não passa de uma vontade que surgiu após ler uma escrita que derrubou as regras que criava para tornar a atualização desse blog mais difícil. Escrevo porque tive vontade, não é preciso uma razão maior.

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