Jornais do mundo inteiro ficaram perplexos com a vitória de Donald Trump nas eleições americanas, produzindo reportagens analíticas tentando compreender porque os americanos escolheram um empresário polêmico sem experiência política, com discurso de ódio. O livro “Globalização – As consequências humanas” de Zygmunt Bauman, publicado em 1999, dá pistas do que levou os americanos a tal decisão.
O voto do americano foi um protesto contra a globalização, tão vendida como única saída pelos americanos nas últimas décadas, cujas consequências também foram negativas para o povo de lá, principalmente para aqueles que perderam seus empregos aos verem as fábricas se mudando para a China.
Bauman afirma no livro que a globalização é ao mesmo tempo algo que “devemos fazer se quisermos ser felizes” para uns e “a causa da nossa infelicidade” para outros. De qualquer forma, o autor reforça que “estamos todos sendo globalizados e isso significa o mesmo para todos”.
Para o autor, a “globalização tanto divide como une, divide enquanto une” e “as causas da divisão são idênticas às que promovem a uniformidade do globo”. A globalização gera uma “progressiva segregação especial”, uma “progressiva separação e exclusão” das sociedades – de um lado uma elite globalizada e de outro o resto da população, que permanece localizada.
Enquanto as elites globais buscam dar um padrão de regras e valores para o planeta, a maioria da população vive em outras condições, não dispõe de recursos para fazerem do mundo cosmopolita. Se por um lado as elites se tornaram extraterritoriais, ou seja, desprendidas de nacionalidades e que buscam uma cultura hibridizada, global, multicultural, a maioria da população está desconectada, cada vez mais distante e os resultados são uma cultura cada vez mais separada, segregada.
Por que isso acontece? Porque as pessoas fora das elites não dispõe de recursos para alcançar esse padrão globalizado. Bauman afirma que “os centros de produção de significado e valor são hoje extraterritoriais e emancipados de restrições locais — o que não se aplica, porém, à condição humana, à qual esses valores e significados devem informar e dar sentido”, isto é, as elites globais criam padrões que não se aplicam as condições humanas da maioria.
A mobilidade
Para Bauman, “no mundo do pós-guerra espacial, a mobilidade tornou-se o fator de estratificação mais poderoso e mais cobiçado, a matéria de que são feitas e refeitas diariamente as novas hierarquias sociais, políticas, econômicas e culturais em escala cada vez mais mundial”.
Essa mobilidade é o ponto de partida de uma elite extraterritorial, desgarrada de obrigações locais. Não há como dissociar a globalização com o capitalismo, pois como afirma Bauman “livrar-se da responsabilidade pelas consequências é o ganho mais cobiçado e ansiado que a nova mobilidade propicia ao capital sem amarras locais, que flutua livremente. Os custos de se arcar com as consequências não precisam agora ser contabilizados no cálculo da “eficácia” do investimento.”
Bauman cita o executivo americano aposentado Albert Dunlap, que afirmava que “a companhia pertence as pessoas que nela investem – não aos seus empregados, fornecedores ou à localidade em que se situa” como base para o pensamento da empresa globalizada. Ela não possui vínculos, responsabilidades, deveres com uma localidade. Pode a qualquer momento deixar uma cidade onde atua e ir para outra atrás de vantagens fiscais (ou de outras naturezas) sem dar explicações para a comunidade onde funcionava. “A companhia é livre para se mudar, mas as consequências da mudança ficam”, assinala Bauman. Uma situação oposta das antigas elites não extraterritoriais como “proprietários fundiários do início dos tempos modernos e corretores imobiliários da era moderna recente”, que não podiam fazer o livre movimento do capital.
Trump, um megaempresário global, soube explorar na campanha o sentimento dos americanos que sofrem as consequências da extraterritorialidade das empresas. O discurso protecionista e a promessa da volta dos empregos foi o que fez o povo apostar em Trump contra uma candidata ligada ao capital financeiro internacional, ao establishment político, a manutenção do status quo.
Não se trata de ser contra a globalização, um fenômeno com vantagens e desvantagens, mas entender as consequências para todos os povos e os problemas que isso pode gerar.